quinta-feira, 19 de julho de 2018

A ARQUITETURA ENXAIMEL: IDENTIDADE, MEMÓRIA E DIMENSÃO PATRIMONIAL EM ITAPIRANGA/SC


Por Douglas Franzen, Simone Eidt e Daniele Tessing


As colonizações alemãs manifestaram-se em diversas regiões do Brasil, mas tiveram uma considerável representatividade na Região Sul do Brasil, que somadas a outras colônias de origem europeia, formaram um mosaico cultural no território brasileiro. Esses imigrantes trouxeram para o Brasil manifestações de conhecimento, padrões de cultura e compreensões de vida que formaram uma base cultural consistente e diversificada. Formas de trabalho, compreensões de economia, manifestações de tradição e cultura que se ressignificaram em território brasileiro ajustando-se às necessidades e possibilidades de um novo território e uma nova dinâmica socioeconômica.
        Uma dessas manifestações se expressou na prática de edificar. A construção de edificações com padrões arquitetônicos de origem europeia teve grande repercussão em território brasileiro, ajustando-se aos materiais e às condições de clima, formatando um padrão arquitetônico que aliou tradição e inovação. Uma dessas manifestações foi o a arquitetura enxaimel, conceito arquitetônico originário dos países germânicos da Europa e que teve relativa expressão nas colonizações do Sul do Brasil.
Nessa perspectiva, pretende-se fazer uma análise da arquitetura enxaimel em Itapiranga-SC, antiga colonização Porto Novo. O projeto de colonização Porto Novo foi idealizado pela Sociedade União Popular, denominada em alemão de Volksverein, instituição que coordenou a implantação de outras colônias alemãs no Rio Grande do Sul, vinculado aos Padres Jesuítas, com o objetivo de implantar no extremo oeste de Santa Catarina uma nova fronteira agrícola e social. O empreendimento foi financiado pela Cooperativa de Crédito Sparkasse, e fundado oficialmente no ano de 1926. Já no ano de 1928, a colonização recebeu o nome de Itapiranga, atual nome do município, gerando mais tarde a emancipação dos municípios de Tunápolis e São João do Oeste.

Síntese da arquitetura enxaimel: a relevância patrimonial
            A técnica enxaimel, ou Fachwerk, é um padrão arquitetônico atribuído historicamente às regiões germânicas da Europa central. Segundo Weimer (2005) o Fachwerkbau designa um padrão construtivo centenário, originário da sociedade feudal, em que as paredes são estruturadas por um tramado de madeira onde as peças horizontais, verticais e inclinadas são encaixadas entre si em que os tramos são posteriormente preenchidos  com taipa, adobe, pedra, tijolos, etc. O enxaimel original da Europa passou por processos de readaptação e reconfiguração ao longo dos tempos, reflexo da disponibilidade de recursos e das limitações na exploração da madeira para a construção civil. Paulatinamente foram agregados elementos estruturais, como blocos de pedra e no século XIX a alvenaria.
            Os partidos gerais do enxaimel europeu são geralmente divididos em alemânico, franco e saxão, elementos que caracterizam a estética e as formas em que são estruturados os elementos. Não é nosso objetivo caracterizar cada uma dessas tipologias, para tanto indicamos a ampla literatura disponível, mas é preciso destacar de que o partido tem uma característica genuína onde o elemento da madeira desempenha um papel fundamental tanto na estrutura, quanto na composição telhado.
A planta única é uma das características das edificações enxaimel, sendo as divisórias internas orquestradas em consonância com as pilastras de sustentação, principalmente nas edificações de maior porte. O elemento central se prostrava em torno do espalho do fogo, geralmente a cozinha, devido às condições climáticas europeias. Na região da Renânia, elemento que nos interessa mais para a análise desse artigo, o enxaimel não se desenvolveu exponencialmente como em outras regiões, devido às históricas turbulências de fronteira e de instabilidades econômicas. Portanto, o enxaimel em tipologia franca dessa região foi mais modesto e menos requintado do que o alemânico e o saxão.
            Diversos elementos estruturantes compõe a arquitetura enxaimel como os baldrames, os frechais e as tesouras como componentes do telhado, a composição dos esteios e os barrotes para escoras da estrutura. O sistema de treliças que dá estabilidade à estrutura é um elemento caracterizante dessa técnica construtiva. O sistema alemânico (Imagem 01), por exemplo, é caracterizado por um afastamento maior dos esteios principais, o que exigia um vigamento horizontal maior. Diferentemente do sistema franco (Imagem 02), onde os esteios estão mais próximos e as escoras possuem leves ondulações. Os contraventamentos ocorrem nas três tipologias do enxaimel e oferecem maior estabilidade e rigidez à estrutura (GISLON, 2013). É importante destacar de que o enxaimel não é um estilo, mas sim, uma técnica construtiva.
Imagem 01: Enxaimel alemânico. Fonte: Weimer (2005)

Imagem 02: Enxaimel franco. Fonte: Weimer (2005)

Para o momento queremos considerar o fato de que esse partido construtivo veio para o Brasil junto com os imigrantes e se manifestou em diversas regiões de colonização germânica. No entanto, é preciso ter ciência de que houve a necessidade da adaptação do sistema construtivo às limitações impostas pelo meio, pela disponibilidade de matéria prima e pelas exigências climáticas. Apesar da ocorrência do frio na Região Sul do Brasil, as altas temperaturas que também ali ocorrem exigiram novos processos arquitetônicos. O fogo e a cozinha como elemento centralizador do padrão europeu perderam relativa significância no Brasil, sendo inicialmente separado dos demais cômodos, principalmente nas colônias velhas. Mais tarde, com a introdução dos fogões esmaltados a cozinha se integra novamente à casa. Outra ocorrência foi a separação da casa do estábulo, do paiol e da oficina de trabalho do agricultor.

Outro elemento agregado no Brasil foi a varanda, devido ao calor e a ocorrência das chuvas tropicais. As paredes da edificação enxaimel geralmente são estruturadas com os tijolos amostra, diferentemente da Alemanha, onde as paredes são preponderantemente caiadas.
Imagem 03: Enxaimel Anglo-Saxão. Fonte: Weimer (2005)

É difícil, ou até impossível estabelecer uma tipologia da ocorrência do enxaimel na região de Porto Novo. Primeiro porque o fluxo migratório, apesar de homogêneo em alguns sentidos étnicos e culturais, foi originalmente bem diverso composto de imigrantes natos alemães e de descendentes de segunda ou terceira geração do século XIX. Segundo porque as técnicas construtivas tiveram que ser adaptadas a disponibilidade de materiais bem como a disponibilidade de recursos financeiros.
Mas é possível considerar a hipótese de que em Porto Novo há ocorrência considerável do enxaimel franco (Imagem 02). Consideramos essa perspectiva porque a bibliografia acerca da imigração alemã parece estabelecer um consenso de que grande parte dos imigrantes que se instalou no Brasil é originária da região chamada de Hunsrück, localizada na região Sudeste da Alemanha, no Estado Renânia-Palatinado nas proximidades dos rios Mosel e Reno, na divisa atual da Alemanha, França e Luxemburgo. Essa perspectiva se torna mais consistente se formos analisar o fato de que em Porto Novo o dialeto alemão Hunsrückisch é preponderante (RUSCHEINSKY, 2014), e pelo fato de que essa região da Alemanha ter uma influência muito forte do catolicismo-cristão, o que nos leva a concluir que muitos alemães e teuto-brasileiros que se instalaram em Porto Novo serem procedentes dessa região.

Manifestações do enxaimel em Itapiranga
            Não há registros de arquitetos que tenham atuado nas edificações em enxaimel em Itapiranga. Aliás, essa ocorrência não pode ser detectada inclusive nas colônias velhas do Rio Grande do Sul (WEIMER, 2005). De maneira geral, a técnica de construção em enxaimel caracterizava-se por um ofício, aprendido através da experimentação e dos ensinamentos repassados entre as gerações. A técnica do enxaimel era um sistema construtivo dominado e aplicado por artesãos como pedreiros e carpinteiros, marceneiros e mestres de ofício, uma espécie de know-how.
            Em Itapiranga há a ocorrência de diversas edificações construídas originalmente em enxaimel. De maneira geral, pode-se perceber esse elemento em outras cidades da margem catarinense do Rio Uruguai e que foram palcos de colonizações alemães, como em São João do Oeste, Mondaí e São Carlos. Para fins de análise, foram catalogadas algumas edificações em Itapiranga que apresentam características dessa técnica. Esse mapeamento foi desenvolvido ao longo dos últimos dez anos, sendo que muitas edificações já foram demolidas ou estão estado precário de conservação, o que fortalece o sentimento de urgência quanto a uma política patrimonial para essas edificações. Há de se registrar que podem existir outras edificações, que por ora não se incluem nessa análise.
            As edificações registradas estão distribuídas no Quadro 01, com imagem e indicações de localização no município de Itapiranga. Na sequência há uma breve descrição de cada edificação:

Quadro 01:  Indicação de localização de edificações enxaimel em Itapiranga. 
Fonte: Adaptado pelos autores

Quadro 02: Edificações enxaimel do município de Itapiranga
Residência
Localização
Ano de construção
Situação
Residência Schoenhals
Linha Sede Capela
1928
Conservada pela família
Residência Poelking
Linha Sede Capela
1932
Demolida em 2016
Residência Werlang
Cidade Itapiranga
1936
Conservada pela família
Residência Neiss
Linha Chapéu
1937
Conservada pela família
Igreja São Rafael
Linha Popi
1952
Conservada pela comunidade católica
Residência Kummer
Linha Popi
1956
Conservada pela família
Residência Konrad
Linha Beleza
1960
Demolida em 2013
Residência Sítio Tio Albano
Linha Beleza
1960
Conservada pela família
Residência Royer
Linha Beleza
-
A residência foi reconstruída em 2012, sendo originária do Rio Grande do Sul.
Fonte: Elaborado pelos autores.
Ao analisar as edificações elencadas no Quadro 02, podemos perceber que a maioria das edificações foram construídas antes década de 1950. A partir de então a região experimentou uma forte influência modernista no padrão arquitetônico, estimulando o desuso dos padrões germânicos e coloniais. É importante também perceber de que não há registro nesse quadro de edificações construídas na comunidade de Linha Presidente Becker, que historicamente representou um reduto de imigrantes vindos diretamente da Alemanha (MAYER; NEUMANN, 2016), sendo necessária uma análise futura mais detalhada desse aspecto. Nesse sentido, é importante destacar de que as edificações enxaimel registradas em Itapiranga nessa análise foram construídas por famílias originárias das colônias velhas do Rio Grande do Sul, o que representa um partido arquitetônico ressignificado e remodelado no Brasil. 
Outro elemento a destacar é de que somente uma das edificações está localizada na cidade de Itapiranga, sendo que o restante está localizada na área rural do município, o que fortalece a ideia de que o enxaimel se manifestou no Brasil preponderantemente em áreas rurais. No entanto, é preciso considerar que nos primórdios da colonização a localidade de Sede Capela foi idealizada para ser uma das sedes da colonização. Em virtude da disputa por poder e preponderância urbana, Itapiranga acabou se tornando a sede da colonização e posteriormente centro de desenvolvimento urbano. 
            A ocorrência do enxaimel genuíno, de maneira geral, caiu em desuso a partir da década de 1960. Podemos considerar que esse padrão de edificação não foi mais utilizado diante da popularização do estilo modernista e da proliferação das edificações construídas em alvenaria. 

Referências de pesquisa
GISLON, Jacinta Milanez. A invenção da cidade germânica: tradição, memória e identidade na arquitetura contemporânea de Forquilhinha-SC. 173 p. Florianópolis. Dissertação do Programa de Pós Graduação em Arquitetura da UFSC, 2013.

MAYER, Leandro; NEUMANN, Rosane Marcia. A dinâmica de ocupação e povoamento de Porto Novo: uma colônia étnica e religiosamente homogênea no extremo oeste de Santa Catarina. In: Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 8, p. 73-88, 2016.

RUSCHEINSKY, Elena W. “Uma vez” falando em alemão: o uso da variante no português falado em Itapiranga e São João do Oeste-SC. 118 f. Dissertação Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da UFFS, Chapecó, 2014.

VEIGA, Maurício. Arquitetura neo-enxaimel em Santa Catarina: a invenção de uma tradição estética. 174 f. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte, USP, 2013.

VOLLES, Paulo. Enxaimel autêntico. Disponível no site:  <http://www.casasenxaimel.com.br/63775387-1b07-4423-adac-31f18d092f82.aspx> Acesso em 25/05/2018.

WEIMER, Günter. A arquitetura popular da imigração alemã. 2ª edição. Porto Alegre: UFRGS, 2005.

WITTMANN, Angelina. Conversando sobre Enxaimel - Fachwerk 1. Disponível em < https://angelinawittmann.blogspot.com.br/2016/06/conversando-sobre-enxaimel-fachwerk-1.html>. 2016.  Acesso em 18/05/2018. 


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