quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

As casas de Porto Novo: o construtor Luiz Ott


Por Douglas Orestes Franzen
Curso de Arquitetura e Urbanismo - Uceff Itapiranga

A história de Luiz Francisco Ott
Qual a herança que deixamos para a posteridade? O que construímos ao longo de nossa vida e que se mantêm como patrimônio para as gerações futuras?  Certamente uma profissão que deixa sua marca na paisagem é a de construtor (Baumeister). Construir uma residência envolve conhecimento, envolve talento. Um traço marcante, um volume, um ornamento, um formato de telhado, o acabamento, um detalhe significativo. Construir é uma obra de arte.
Luiz Francisco Ott é um construtor que merece o reconhecimento pela sua importância para a história de Porto Novo. Construiu inúmeras residências em alvenaria e madeira que atualmente compõe a paisagem do núcleo histórico de Chapéu-Capela-Macuco.  Sua contribuição para a história de Porto Novo é inestimável e precisa ser reconhecida pelo seu talento e inovação que hoje dignifica o patrimônio arquitetônico e materializa a memória da colonização.
Luiz nasceu 24 de Agosto de 1922 em São Sebastião do Caí. Filho de Jacob e Paulina Ott, aprendeu desde cedo o ofício de pedreiro e de carpinteiro. Casou-se com Erna Flach no ano de 1946, com quem teve 15 filhos. Devido às dificuldades na velha colônia e ao desafio de melhorar a sua vida, veio morar na Linha Chapéu em 1949. Durante três anos morou na vila de Chapéu e depois adquiriu uma propriedade agrícola onde passou a viver com sua família. Luiz faleceu no ano de 2005 deixando um legado muito significativo para a história de Porto Novo.

A sua herança para Porto Novo

Em Porto Novo, Luiz aprimorou sua habilidade de construtor sempre motivado pela inovação. Luiz se destacou pela sua habilidade na carpintaria e na confecção de objetos e aberturas em madeira. Na década de 1950 que construiu a maior parte das edificações que ainda se encontram pela região.  Na maioria das casas que construiu foi ele mesmo quem fez as aberturas em madeira com um aprimorado requinte. Com a habilidade na madeira produziu objetos para residências, oratórios, nichos em madeira e inclusive caixões para sepultamento.
Ao longo de sua atividade como construtor colaborou na construção de inúmeras residências e igrejas. Auxiliou na construção da igreja de Bom Princípio-RS e na igreja de Linha Chapéu, juntamente com seu irmão José, que morou por ali durante um ano enquanto perdurou a obra. José foi quem inclusive construiu o campanário (Turm) da igreja.  
Igreja de Linha Chapeu, Itapiranga. Fonte: Arquivo da família Ott.

Igreja de Bom Princípio, RS. Fonte: Arquivo da família Ott

Como residências podemos destacar a da família Düngersleben (pioneira de Porto Novo), da família Meier em Macuco, da família Machry em Chapeu, da família Burich em Macuco, da família Terhorst em Chapéu, da família Machry/Sidegum em Chapéu. Inúmeras outras foram construídas pela região. Seu filho Miguel lembra que seu pai, várias vezes ficava muitas dias fora de casa trabalhando como construtor.

Residência Düngersleben no ano de sua construção em 1959. Fonte: Arquivo da família Ott.

O que diferencia o trabalho de Luiz Ott é sua habilidade como carpinteiro e sua perspicácia na produção de ornamentos na fachada das residências em alvenaria, além de dominar a técnica da escaiola. Como carpinteiro construiu a casa enxaimel da família Machry em Chapeu, que hoje ainda está em ótimo estado de conservação.  As aberturas de grande parte das residências que construiu ele mesmo fez, deixando sua marca com detalhes e florais nas portas.
As casas de alvenaria eram construídas sem o uso de ferro, somente com tijolos maciços e barro. Os telhados em formato cupiá são outro elemento significativo para essas residências históricas. Sua habilidade na ornamentação de fachadas delineou seu estilo e seu talento. Geralmente esculpia na fachada os letreiros do proprietário, o ano de construção além de volumes e desenhos como estrelas e formas geométricas.  Nos anos 1950 era comum se fazer uma fundação com blocos maciços de pedra, trabalho feito na maioria das vezes por Wilibaldo Schmitz. Nas residências Meier e Burich de Macuco, essas pedras foram tiradas do leito do Rio Macuco e transportadas de carroça até a propriedade da família. Em geral a construção de uma casa demorava em torno de um ano para ser concluída.
A escaiola é outra marca registrada de Luiz Ott. Essa é uma técnica centenária trazida da Europa e criada na época do Renascimento parar imitar o granito e o mármore da era clássica. Consiste na técnica de aplicação de gesso ou cimento na parede com aplique de alguma tintura, o que proporciona uma aparência texturizada muito significativa. Em Porto Novo, Luiz utilizou da técnica de escaiola na maioria das residências que construiu. Para a confecção da escaiola ele fez uso de duas variações.  A primeira consistia na simples aplicação de cimento branco na parede com a aplicação posterior de aplique de tinta, que ele fazia com um pincel confeccionado com uma espiga de milho envolto naqueles antigos sacos de soja costurados a mão. Com uma perspicácia e uma paciência memorável, ele aplicava a tintura ordenadamente na parede proporcionando um mosaico muito aprimorado. A segunda forma de escaiola, essa mais original e requintada, era feita com uma massa formada de cimento branco, leite e tinta. O aplique desse composto na parede gerava um efeito muito texturizado, liso e brilhante.
Outro elemento a destacar é a confecção dos parapeitos e guarda corpos de escadarias e varandas, feitos artesanalmente por Luiz. Para tal ele utilizava um formão com os detalhes entalhados em seu fundo onde era despejado o cimento. Esses detalhes eram feitos de florais e símbolos geométricos. É por isso que Luiz precisa ser valorizado na história de Porto Novo. Graças ao seu talento temos em nossa região residências coloniais de considerável valor arquitetônico.  
A sua própria residência na Linha Chapéu foi construída em várias etapas, mas já na fundação se encontra a técnica escaiola presente, o que demonstra que Luiz trouxe a técnica do Rio Grande do Sul. A última etapa da construção é hoje a fachada frontal, que Luiz durante muito tempo deixou sem pintar aspecto que, segundo seu filho João, ao deixar o reboco à mostra proporcionava um maior requinte e originalidade à edificação. Essa curiosidade demonstra a preocupação de Luiz Ott com a originalidade de suas obras.
As residências que hoje estão presentes na paisagem da região histórica de Chapéu e Sede Capela (Itapiranga) e Macuco (São João do Oeste) precisam ser valorizadas pela comunidade local. Esse núcleo histórico é de considerável valor de memória para a região, tendo um potencial significativo para o turismo, para a cultura e para a história. A contribuição de Luiz Francisco Ott para a arquitetura local foi muito significativa e a valorização desses personagens da história de Porto Novo é uma obrigação para com a história dos colonizadores, porque reflete o conhecimento, a engenhosidade, a perspicácia, a criatividade e o valor de cultura que carregamos como herança do passado.



Residência Ott e os filhos Miguel e João, Linha Chapeu.

Residência Ott, Linha Chapeu.


Residência Düngersleben na atualidade. Linha Chapeu, Itapiranga.

Residência Burich, Linha Macuco. São João do Oeste


Residência Burich, Linha Macuco.

Guarda corpo na residência Ott.


Porta com detalhes entalhados na madeira. Residência Düngersleben

Escaiola na residência Ott

Escaiola na Residência Ott.

Residência Terhorst, Linha Chapeu.

Residência Machry, Linha Chapeu.  
Residência Sidegum/Machry. Linha Chapeu


Guarda corpo, residência Sidegum/Machry.
Escaiola feita de cimento branco, água e leite, na Residência Terhorst.

Porta com detalhes entalhados na madeira. Residência Ott.
Escada frontal, residência Düngersleben
Guarda corpo, Residência Düngersleben
Residência Ott, Linha Chapeu.
Residência Sidegum/Machry.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

O patrimônio imaterial de Itapiranga: o canto coral



por Douglas Franzen
Professor Uceff Itapiranga

O canto coral é outro elemento significativo para a cultura local. Presente desde os primeiros tempos da colonização é um valor cultural herdado da imigração alemã do século XIX.  As sociedades de corais em colônias alemãs do Brasil foram implantadas nos mesmos padrões das Gesangvereine e Singvereine, muito comuns na Áustria e na Alemanha do século XIX. Na visão de Gabriel e Souza (2017), na Europa essas instituições aglomeraram atividades culturais que até então eram vinculadas à instituições tradicionalmente constituídas e que perderam espaço na sociedade naquele período, como as cortes e as igrejas. No contexto da imigração “imigrantes alemães residentes em diversas regiões brasileiras procuraram perpetuar a tradição dessas sociedades corais europeias no Brasil com a fundação de suas próprias associações em território brasileiro” (GABRIEL; SOUZA, 2017, p. 88).
Em Itapiranga a prática coralista esteve muito atrelada à Igreja Católica, estimulada principalmente pelos padres jesuítas. É preciso destacar de que grande parte da prática do canto coral historicamente esteve atrelada a uma prática cultural sem fundamentação erudita. Ou seja, grande parte dos regentes de coral e dos cantores não possuía uma formação acadêmica. As comunidades que se formaram na colonização de Itapiranga constituíram um padrão social em que a prática religiosa era muito consistente, e nessa dinâmica se formou a tradição coralista, principalmente de vertente sacra.
Coral da Associação Cultural Fai, 2018

Membros de Corais de Itapiranga na celebração dos 90 anos de Porto Novo. 

Regentes de Corais homenageados pela Aceti.

A maioria das comunidades de Itapiranga possuía seu próprio coral, formado por homens e mulheres. Em alguns casos houve a ocorrência do coral masculino, formados por vozes de homens que se tornou um elemento muito presente na cultura local. Nesse sentido, um elemento muito importante para compreender o canto coral em Itapiranga foram as escolas paroquiais, onde em cada comunidade se instalava uma escola para a educação das crianças e adolescentes. Geralmente, como ocorreu na maioria das comunidades, o professor dessa escola era nomeado pela comunidade e pela colonizadora. O professor era uma personalidade e uma liderança na comunidade, lidava com questões de educação e de cultura, estando à frente de atividades culturais e recreativas, como era, por exemplo, a regência do coral. Nessas escolas paroquiais as crianças tinham instruções musicais e eram estimuladas no canto coral, o que colaborou na formação de uma cultura musical muito consistente (EIDT, 1999).

“Ter um coral para cantar nas missas era uma questão religiosa, mas também fazia bem ao ego dos habitantes locais, visto que a falta de um coral na comunidade diminuía a imagem da mesma e da sua gente. Nos anos 70, foram introduzidas as Associações Corais, as quais filiaram todos os simpatizantes e interessados, formando um órgão administrativo e mantenedor do coral. Neste esquema, o direito elementar do sócio aparece in memoriam et in réquiem, pois terá a presença do coral após a sua morte, na missa do seu enterro ou na de algum familiar seu” (JUNGBLUT, 2000, p. 354)

A prática do coral representa um elemento muito significativo para a cultura local. Está inserida no cotidiano das comunidades, nas práticas simbólicas e nas celebrações no espaço rural e urbano. Durante grande parte da história de Itapiranga, principalmente com a ausência da energia elétrica e da televisão, o canto representou um elo de pertencimento e de identidade, onde as pessoas se reuniam para cantar e celebrar. Nesse sentido, o canto coral é uma das várias manifestações musicais herdadas historicamente e ressignificadas pela dinâmica da cultura.
O canto cria laços afetivos e sensoriais com a história, mantêm vivo um sentimento de identidade e de pertencimento, a lembrança de um passado, das gerações antecessoras, da memória do imigrante e da terra natal Alemanha. Nesse sentido, o canto coral tem um papel significativo na dinâmica do patrimônio imaterial, porque permeia vários elementos significantes da identidade e da memória local. A identidade é uma construção social que se fundamenta na diferença, nos processos de alteridade ou de diferenciação simbólica. Para Arévalo, “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, na medida em que ela é um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si” (ARÉVALO, 2004, p. 934).
No ano de 1964 foi fundada a Liga Cultural e Artística de Coros da Fronteira, entidade que engloba os corais de diversos municípios da região Extremo-Oeste de Santa Catarina. Em Itapiranga a entidade que coordena as atividades dos corais é a Associação Itapiranguense de Coros (Ascorita), que engloba treze corais do município. O fortalecimento dessas entidades demonstra o quão significativo é o canto coral para a história local permeando a concepção de patrimônio imaterial e sua relação de proximidade com a identidade cultural.
Apresentação Coral São Pedro Canísio.


Coral Municipal de Vozes Masculinas de Itapiranga

Referências de Pesquisa

ARÉVALO. J. M. La tradición, el Patrimônio y la identidad. In: Revista de estúdios extremeños, Vol 60, nº 3, p. 925-955, 2004.


GABRIEL, Ana Paula; SOUZA, Susana Cecília. Martin Braunwieser (1990-1991) e sociedades corais alemãs de São Paulo: práticas de repertório europeu. In: VIDEIRA, Mário; DE OLIVEIRA, Ísis Biazioli (Orgs.). Anais da Jornada Acadêmica Discente do Programa de Pós Graduação em Música ECA/USP. São Paulo: ECA-USP, 2017, p. 86-97.


JUNGBLUT, Roque. Documentário Histórico de Porto Novo. São Miguel do Oeste: Arco Íris Gráfica e Editora, 2000.

O patrimônio imaterial de Itapiranga: a Oktoberfest



por Douglas Orestes Franzen
Professor da Uceff Itapiranga

A Oktoberfest é uma festa que surgiu na Alemanha no início do século XIX na região da Baviera, mais precisamente na cidade de Munique.  Assim como qualquer tradição, ela foi uma celebração criada e que acabou se tornando popular com o passar dos anos ao ponto de ter se expandido para várias regiões do mundo, principalmente onde se instalaram imigrantes alemães. A origem da festa na Alemanha se remete ao casamento real entre Ludovico da Baviera e a princesa Teresa de Saxe-Hildburghausen, que ocorreu no mês de Outubro e que se tornou popular e uma tradição anual por ser associado às comemorações de fim de verão e início de Outono na Alemanha. Atualmente a Oktoberfest é uma festival folclórico reconhecido internacionalmente e leva uma multidão de turistas à cidade de Munique.

Em Itapiranga, os registros da primeira edição são datados do ano de 1978, quando, segundo o histórico oficial do evento, um grupo de amigos se reuniu na comunidade de Linha Presidente Becker para iniciar uma comemoração aos moldes da que ocorria na Alemanha. Segundo o histórico do evento, a ideia “foi de realizar uma festa específica da comunidade para cultivar e preservar a cultura alemã” (OKTOBERFEST, 2018). Com esta data, Itapiranga defende a posição de ser o berço nacional da Oktoberfest. Em 2018 foi inagurado em Linha Becker o memorial da Oktoberfest de Itapiranga.
Memorial da Oktoberfest. Fonte: OesteMania.net

Com essa origem comunitária a Oktoberfest cristaliza um vínculo simbólico e histórico com a Alemanha, no sentido de manifestar uma festa de caráter localizado e restrito a uma comunidade com vínculos de proximidade identitária. Com o passar dos anos, a festa começou a ganhar proporções maiores, passando a ser realizada inclusive na cidade de Itapiranga, onde se construiu um complexo para tal finalidade. Com essa dimensão, a Oktoberfest adentrou num outro campo de ação em relação à dimensão patrimonial, que é o turismo cultural.
Com a dimensão turística potencializada, Itapiranga se encontra diante do dilema de manter vínculos simbólicos de identidade histórica e cultural frente ao processo de mercantilização e comercialização da festa. Nada impede que as dimensões culturais e comerciais sejam aproximadas e se complementem para objetivos comuns. No entanto, à medida que a Oktoberfest se torna um fator de geração de renda através do turismo cultural, há uma fragmentação das identidades comercializadas, ou seja, se constituem elementos de divergência entre simbologias genuinamente culturais e históricas em detrimento de um maniqueísmo imagético que atende ao desejo de se constituir uma “imagem para turista ver”.  
Oktoberfest na Linha Becker. Fonte: OesteMania.net

O que se constata é um esforço por manter práticas que fortaleçam o laço entre a festa e a identidade cultural. Esse esforço se cristaliza numa agenda ampla de atividades socioculturais que ampliam o horizonte de abrangência da Oktoberfest, criando vínculos com a comunidade local. Um exemplo é a escolha das soberanas da festa que representam entidades da comunidade itapiranguense. Outra atividade nesse sentido é representada pela escolha do casal Fritz e Frida e do concurso do casal Opa e Oma.  Na agenda da festa de 2018 se percebeu também um esforço por realizar atividades culturais o que representa uma iniciativa no sentido de fortalecer os laços da Oktoberfest com a cultura local.
Concurso Fritz e Frida. Fonte: Site Prefeitura Itapiranga

Concurso Opa e Oma. Fonte: Site Prefeitura Itapiranga

Vídeo da Oktoberfest da Melhor Idade 2018

Fato é de que a Oktoberfest simboliza uma festividade de identidade germânica da população local. A festa em si representa um momento que sintetiza toda uma gama de práticas culturais cotidianas, que vão desde hábitos alimentares, celebrações, valores, padrões de comportamento, formas de se vestir e formas de se expressar.
Soberanas 2018. Fonte: Oktoberfest Oficial


O patrimônio imaterial de Itapiranga: a culinária germânica

Prato típico alemão servido na Oktoberfest

Por Douglas Orestes Franzen
Professor da Uceff Itapiranga

A culinária representada através dos hábitos alimentares, é um reflexo direto dos padrões de comportamento de determinada cultura. Ela representa formas de vida, representações, técnicas, conhecimentos e saberes, representado através de um alimento. O alimento e sua significação culinária, evoca os sentidos de vida e são um referencial sobre os costumes e as tradições culturais de um povo.Na concepção de Giustina e Selau, a elaboração dos alimentos envolve técnicas, elementos e artefatos que trazem o conhecimento adquirido no tempo. Segundo os autores, o alimento é considerado um patrimônio cultural, sendo que pode evocar a memória e despertar lembranças de um momento outrora vivido.

Este conhecimento, se não registrado, pode se perder, com isso gerações futuras não terão oportunidade de conhecer este passado. É importante a preservação deste saber fazer, a manutenção e transmissão continuada do conhecimento adquirido pelos povos, pois assim fortalece a identidade, a cultura e as práticas de seu patrimônio cultural material e imaterial. (GIUSTINA; SELAU, 2009, p. 46)
           
A culinária é um bem patrimonial que reconfigura com o passar dos tempos. Sendo de valor imaterial, está atrelado à saberes, conhecimentos e técnicas de preparo. Esta perspectiva se torna simbólica quando vislumbramos a imigração, por exemplo. Todo imigrante carrega consigo valores culturais, que se se adaptam ao meio e se reconfiguram no novo espaço de moradia. Essa adaptação ocorre devido ao clima, aos recursos naturais, às condições de vida e de trabalho e principalmente à disponibilidade dos alimentos. Nessa trajetória elementos de referência se perdem mais inúmeros outros se agregam.
Se formos vislumbrar a imigração da Alemanha para o Brasil, percebe-se que houve condicionantes de adaptação à nova realidade vivenciada em território brasileiro. Ou seja, padrões alimentares e culinários originários da Alemanha se perderam ou se reconfiguraram. Em muitos casos houve inclusive um alimento agregado à culinária do imigrante alemão. Temos como exemplo a mandioca, ou aipim. Esse alimento não constava dos hábitos alimentares na Europa e foi agregado aos hábitos alimentares do imigrante em território brasileiro. Poderíamos citar também o feijão e inúmeras frutas e legumes, sem esquecer do chimarrão, uma bebida quente típica do Rio Grande do Sul que foi assimilada pelos alemães e se transformou num hábito alimentar.  
Diversos alimentos configuram os hábitos alimentares de tradição germânica em Itapiranga. A colonização e as condições de vida dos colonizadores, principalmente pela inexistência de energia elétrica nas primeiras décadas, impôs muitos determinantes para a produção e principalmente para a conservação de alimentos. Por isso, as conservas ou compotas, representam uma tradição culinária da região. Nesse sentido destaca-se a produção de geleias de frutas (conhecidas em alemão como schmia) e as conservas de legumes como pepino, beterraba e repolho (conhecido como chucrute ou sauerkraut). Confira no vídeo abaixo o preparo do chucrute:


Os derivados da carne também são comuns na culinária alemã. Nas primeiras décadas, devido à falta de energia elétrica, a conservação da carne era feita dentro de uma lata com a banha do porco. Outra tradição comum derivada da carne é a linguiça embutida, tendo diversas variações como a spritzwurst (linguiça defumada), blutwurst (linguiça de sangue), koppwurst (conhecida como morcilha).
Spritzwurst

Conforme Eidt (2011), em Itapiranga os determinantes e condicionantes territoriais forçaram um padrão adaptativo ao meio que afetaram as formas de vida da população. Nesse sentido, as práticas culinárias se readaptaram e se reconfiguraram aos determinantes socioespaciais.
A produção de derivados de farinha de trigo e de milho também são um elemento significativo para o patrimônio culinário local. Os pães, bolos e bolachas são tradições cultivadas pelas famílias de Itapiranga.
A cuca, ou kuchen, representa um alimento que potencializa a identidade germânica local. Compreender a abrangência da cuca (kuchen) é vislumbrar a relação ambígua entra a história, a identidade e os costumes culinários locais.  Nas primeiras décadas de colonização, com a escassez de açúcar, a cuca era um alimento preparado para ocasiões especiais, como era a Kerbfest, a festa do padroeiro de determinada comunidade católica, um casamento, uma festa comunitária ou no Natal e na Páscoa. A cuca possui inúmeras variações, podendo ser preparada com frutas como a uva, ou até mesmo com doces e geleias.
Cuca de uva

No ano de 2018 a Prefeitura Municipal de Itapiranga instituiu o “
Dia D Deutschland”, uma iniciativa em parceria com o comércio local visando estimular atividades culturais alusivas à identidade germânica local. Nesse dia o comércio e os restaurantes se organizam para oferecer uma gastronomia típica, aspecto que fortalece o interesse por vincular a identidade histórica ao fomento às práticas de turismo e desenvolvimento econômico de Itapiranga.


Outra iniciativa do poder público municipal foi a edição de um livro com o resgate de receitas culinárias consideradas típicas da cultura alemã de Itapiranga. O livro é composto de receitas de bolachas, biscoitos, bolos, tortas, cucas, sobremesas, pães e salgados diversos e foi elaborado com a colaboração de mulheres que no documentário demonstram as receitas e as formas de preparo desses alimentos. Todas essas iniciativas colaboram no fomento às práticas de conservação da culinária simbólica da colonização, constituindo um elemento vinculador da cultura com a história e a memória.
Na programação da Oktoberfest há o Café Colonial, espaço culinário que serve alimentos vinculados à tradição germânica.  Um desses pratos é o Eisbein, feito com joelho de porco e acompanhado de purê de batata.  Obviamente temos de compreender o Eisbein como uma regalia culinária que atualmente é servida como um prato típico de alto valor agregado. Quando imaginamos o preparo desse alimento nas famílias dos colonizadores alemães, em suas práticas cotidianas, temos de vislumbrar um preparo bem mais modesto devido às dificuldades adversas da vida colonial.
Eisbein mit kartoffeln. Eisbein com batatas.

Referências de pesquisa

EIDT, Paulino. Projeto Porto Novo: utopia ou etnocentrismo? In: Revista Esboços, v. 18, n. 25, p. 184-211, ago 2011.

GIUSTINA, Adelina Padilha; SELAU, Maurício da Silva. A culinária como patrimônio cultural imaterial. In: Cadernos do CEOM, p. 45-67, ano 23, n. 31, 2009



sexta-feira, 23 de novembro de 2018

As casas de Porto Novo: Residência Werlang







Pesquisa e elaboração: Claudina Badalotti, Douglas Franzen, Patricía de Oliveira, Gabriel Chaves
Curso de Arquitetura e Urbanismo Uceff Itapiranga

A casa e sua história
            Quantas histórias tem uma casa? Quantas vivências? Quantos Natais e Páscoas com pessoas queridas? Quantas refeições em família? Quais as histórias de vida de cada pessoa vivenciadas na casa dos pais e dos avós? O cheiro do bolo e o sabor das bolachas. As brincadeiras no quintal e as histórias do sótão em dias de chuva. 
            A residência da Família Werlang de Itapiranga é mais uma casa que transborda memória. As paredes, as janelas, as portas, os cômodos respiram história. Registram memórias familiares, momentos de afeto e de carinho. Todas essas histórias vivenciadas e a importância que essa residência tem para a paisagem de Itapiranga são dignas de preservação. E é isso que Cládis, Silvestre e Angélica preservam no aconchego da casa enxaimel: as memórias da família. A família cuida com carinho dessa relíquia da arquitetura itapiranguense e se sente orgulhosa em poder mantê-la viva como um valor da história e da identidade local. É nessa dimensão que temos de entender o patrimônio histórico: algo que tenha valor, que tenha sentido e que seja vivenciado pelas pessoas e pela comunidade. A cidade e a paisagem que construímos tem relação direta com o valor que damos para a nossa história, para tudo aquilo que já construímos e que vamos construir.
A história da família Werlang começou em Porto Novo no ano de 1933, quando chegaram a Itapiranga o casal José Werlang e Angélica Stoffel Werlang. Adquiriram um lote de terra do Volksverein e construíram uma modesta moradia de madeira. José Werlang foi, além de professor, também escrivão, comerciante e sócio fundador da Caixa Rural, hoje Sicoob Creditapiranga, na qual se tornou o primeiro presidente. Angélica se dedicou aos cuidados com os filhos e ao trabalho doméstico.
Família Werlang. Fonte: Arquivo da família

Com a saída da presidência da Caixa Rural e incentivado por amigos, José construiu em 1936 uma nova residência tendo anexo um pequeno comércio onde vendia, principalmente, tecidos para a confecção de roupas, além da compra e revenda de produtos coloniais, principalmente a banha de porco. 
Na época muitas pessoas do interior da colônia buscavam auxílio médico no hospital de Itapiranga e devido à distância muitos não tinham como voltar para casa no mesmo dia, principalmente gestantes. Por isso, a família Werlang oferecia gratuitamente pouso em sua casa até que se recuperassem e pudessem retornar para suas residências no interior.
Com o falecimento de José (1953) e Angélica (1965), o casal Edgar Werlang e Winfrida Rost Werlang assumiu a residência e a casa comercial foi transferida para outro endereço. Nesse local encontra-se atualmente outra relíquia da história itapiranguense: a antiga igreja em madeira, que quando da sua demolição na década de 1950 serviu de sede para a Comercial Werlang.
Residência Werlang na década de 1940.

Em 1993 a casa foi assumida pelo casal Silvestre e Cládis que ali buscam preservar a memória e as histórias da família Werlang. Muitas memórias se vinculam a essa casa. Cládis lembra que nos anos 1970, quando a política brasileira passava por momentos conturbados, seu pai Edgar ficava ouvindo no rádio o Repórter Renner e as crianças deviam ficar em silêncio sentadas na escada que leva ao sótão. “A roda de chimarrão ao redor do fogão à lenha, independente de frio ou calor e, principalmente aos domingos depois da missa quando vinham os parentes e amigos do interior são fragmentos de vivências da casa. Também recordo com saudades dos períodos que antecediam ao Natal e a Páscoa, época em que o sótão servia de esconderijo para as latas de bolachas pintadas já que as mesmas só podiam ser consumidas no dia e dias subsequentes. Também o Papai Noel, no dia de São Nicolau (Nikolaustag) à noite tinha espaço para nos surpreender jogando balas e pirulitos pelas janelas que já ficavam estrategicamente abertas”, lembra Cládis.
Cládis, Angélica e Silvestre.

A casa e sua arquitetura
O padrão arquitetônico escolhido para a nova moradia foi o enxaimel. A estrutura originalmente era autoportante, sendo que na parte frontal funcionava o comércio da família Werlang, aos fundos havia a cozinha e ao lado os cômodos da família. O pavimento superior, o sótão, ou em alemão Speiger, servia para depósito e espaço de convivência familiar. O banheiro e a área de serviço ficavam aos fundos do terreno, sem ligação direta com a casa.
A varanda frontal somente foi construída mais tarde e as janelas originais também foram trocadas por venezianas.
A residência Werlang possui um bom estado de conservação com destaque para as linhas horizontais, verticais e diagonais oriundas do madeiramento aparente da estrutura, aspecto arquitetônico que define a edificação juntamente com a cobertura e o sistema construtivo enxaimel.
O enxaimel (em alemão Fachwerk) é uma técnica construtiva trazida pelos imigrantes alemães e adaptada ao clima e às necessidades no Brasil. Em Itapiranga e São João do Oeste temos várias edificações nesse padrão que necessitam de preservação, pois são exemplares dignos da história dos colonizadores de Porto Novo. A maioria delas é preservada com muito esmero pelas famílias, no entanto, muitas delas já foram perdidas.
As paredes alcançam uma altura de 1,85 metros, sendo que a estrutura é toda ela em madeira de araucária e o tramo (Fach) é de tijolos aparentes. O revestimento final resulta um acabamento texturizado e de considerável valor estético.
Os barrotes possuem espessuras de 12cm x 12cm, sendo que os peitoris (brustriegel) na linha horizontal se encaixam com os esteios (stiel) em linha vertical e as escoras (strebe) em diagonal. No enxaimel eram feitas marcações para que todas as peças pudessem ser identificadas e encaixadas, podendo ser realizada na parte interna ou externa, seguindo geralmente um numeral romano indicando a posição da peça na respectiva parede. Por isso, de maneira geral, a estrutura era toda montada separadamente e depois construída a edificação. Esse trabalho com a madeira proporciona ao enxaimel um inestimável valor arquitetônico e histórico, pois envolve um conhecimento de carpintaria e reflete um valor cultural dos colonizadores de Porto Novo. 
Podemos observar que os carpinteiros utilizaram desta técnica para as peças da parede lateral da residência formando assim, dois conjuntos de numerações. Na época geralmente as plantas eram de formatos retangulares. Curioso é que cada carpinteiro possuía uma combinação de marcação e numeração, geralmente com a utilização do formão, como podemos perceber nas várias residências no interior do município.
O tipo de telhado é do modelo Halbwalmdach ou então “metade de telhado de quatro águas”, seguido de uma estrutura de telhado atirantado formado por treliças de madeira. O assoalho (fussboden) ainda é original e reflete uma aparência requintada para o interior da residência. Como suporte do assoalho encontramos barrotes (balken) de madeira inteiriça.
Atualmente o telhado é composto por telhas do tipo americanas, que possuem capa e canal na mesma peça, uma vez que, as antigas telhas schindle de madeira apodreceram e houve a necessidade de serem substituídas, sendo necessária ainda a utilização de mantas térmicas devido ao calor no segundo pavimento. A inclinação do telhado é de aproximadamente 65% nas duas aguas maiores (laterais) e 45 % nas menores (frontal e posterior). A varanda coberta possui uma inclinação de 45% e conta com o madeiramento aparente. Foram agregados calhas de aço galvanizado nas laterais e na água da varanda além de serem mantidos os espelhos da parte frontal do telhado.
A arquitetura da residência em enxaimel concede a ela um espaço privilegiado na paisagem da cidade de Itapiranga. Conservada com muito esmero pela família, a Residência Werlang é uma demonstração do quão significativas as residências históricas são para a identidade e a cultura local.